Have an account?

quarta-feira, 10 de abril de 2013

O trânsito, a guerra e a paz

 Foto: Ze Carlos Barretta - CC

Por Denis Russo Burgierman, em 8 de abril de 2013

Vinha eu pela rua, de bicicleta, a caminho do trabalho e, vendo que não havia ninguém na direção contrária, passei pelo sinal vermelho. Um pedestre que atravessava pela faixa se incomodou e falou, num tom baixo, tranquilo: “o farol”. Não respondi, nem parei, nem olhei. Veterano da “guerra do trânsito” que sou, deixei o pedestre para trás se sentindo desprezado. Segui meu caminho.

Mas segui pensando.

Eu poderia ter parado. Como minha bicicleta é pequena e eu ia devagar, bastaria flexionar um tiquinho as falanges da mão, apoiar a ponta de um pé no chão e eu estaria de frente para o pedestre. Poderia fixar meus olhos nos olhos dele e falar num tom igualmente baixo, igualmente tranquilo: “eu vi você, só passei o sinal vermelho porque tinha certeza de que não iria colocar ninguém em perigo. Minha bicicleta é pequenininha, eu sabia que não iria assustar você.”

Mas não falei nada disso, segui em frente ignorando o sujeito. Afinal, eu sou um ciclista, ele é um pedestre, somos de exércitos diferentes na guerra do trânsito. Não conversamos.

Esse (des)encontro num cruzamento de São Paulo me fez lembrar dos textos da jornalista Natália Garcia, criadora do projeto Cidades Para Pessoas. Natália costuma dizer que nós não somos “ciclistas”, “pedestres”, “motoristas”, “motoqueiros”. Somos, antes de mais nada, pessoas.

Tanto eu quanto aquele pedestre quanto os motoristas à nossa volta somos seres humanos. Por acaso, naquele dia, por algum motivo, eu decidi que o melhor jeito de chegar ao trabalho seria de bicicleta – enquanto outras pessoas pela cidade optaram por andar de carro, a pé, de ônibus, de metrô, de táxi, de helicóptero. Isso não precisa fazer de nós inimigos.

Eu não sou “ciclista”. Sou uma pessoa, filho dos meus pais, irmão dos meus irmãos, amigo dos meus amigos, funcionário do meu empregador, pagador de impostos na minha cidade. Não sou um guerreiro de uma guerra imaginária. Minha bicicleta não me define. Assim como o carro imenso de vidro fumê à minha frente não é necessariamente um inimigo cruel – talvez seja só uma pessoa legal, com medo do trânsito, tentando se proteger da violência das ruas.

Todos nós – ciclistas, pedestres, motoqueiros, motoristas, usuários de transporte público – somos Homo sapiens, uma espécie social, dotada de uma imensa capacidade de comunicação. Milênios e milênios de evolução deram a nós todos um poder fantástico de se fazer entender, de criar empatia, de se colocar no lugar do outro. Nas nossas vidas, a maioria de nós, na maior parte do tempo, é gentil, tranquila – falamos baixo uns com os outros, olhamos nos olhos e conversamos.

Mas, no trânsito (assim como na internet), a comunicação se dá aos berros raivosos. Ignoramos os outros, xingamos, erguemos o dedo do meio. Se andamos de carro, nos achamos no direito de acusar todos os ciclistas de serem folgados sem respeito pelo trânsito. Se estamos sobre a bicicleta, ignoramos os pedestres e desafiamos os carros. Se andamos a pé, gritamos com o motorista que passa, como se eles fossem todos assassinos cruéis.

Em parte, é um problema de escala. Os carros de hoje são grandes demais, rápidos demais, seus vidros são escuros demais. Tudo isso evita o contato visual. Evita que possamos olhar nos olhos uns dos outros e reconhecer no outro a nossa própria humanidade. Sem isso, nosso sofisticadíssimo sistema de comunicação simplesmente não funciona – e aí só quem grita é ouvido.

Algumas cidades da Alemanha e da Holanda estão acabando com toda e qualquer sinalização de trânsito – não há mais semáforos, nem placas, nem mesmo aquele degrau que separa a calçada da rua. Tudo é de todos. Quem está de carro tem que seguir devagar, olhando nos olhos dos outros, para negociar a passagem. Seria bom se as ruas da minha cidade fossem assim – um espaço de encontro entre seres humanos, em vez de um campo de batalha.

Falta muito para isso, mas me prometi que, a partir de agora, vou andar pela rua atento. Quando estiver a pé, procurarei o olhar dos motoristas e conversarei com eles, sem gritar. Quando estiver de bicicleta, prestarei atenção em quem estiver à minha volta, pronto para conversar. Quando estiver de carro, procurarei deixar a janela aberta – e os ouvidos também. Não somos inimigos uns dos outros. E não seremos uma sociedade civilizada enquanto não formos capazes nem sequer de reconhecer a humanidade de quem escolhe um meio de transporte diferente do nosso.